quinta-feira, 22 de abril de 2010

Da nossa política (mais um "causo" que se conta)

Embora publicado na segunda metade do ano passado, este artigo me pareceu mais atual do que nunca. O artigo é de autoria do médico João Gilberto Rodrigues da Cunha - membro da família Rodrigues da Cunha (entre eles, o coronel Lyndolpho Rodrigues da Cunha, falecido em 1927 em Araguari; Clarimundo Rodrigues da Cunha; o capitão Manoel Rodrigues da Cunha Mattos, mais conhecido por "Capitão Manoel Pólvora"; e Belisário Rodrigues da Cunha - todos oriundos dos sertões da "Farinha Podre", hoje Uberaba). Diz o artigo:

Sou leitor diário do que chamam Macaco Simão, gerente da coluna deste país de piada pronta na Folha de S.Paulo. Tem muita gente comigo nesta leitura. Afinal e cada vez mais, o nosso Brasil é líder mundial da piada pronta. Melhor ainda, em nossa habilidade diária transformamos dramas nacionais em piadas internacionais. Ou seja, se bom humor fosse moeda, o Brasil encaçapava a sete nas bolsas de negócios. Os que me conhecem e leem sabem como eu gosto de levar na gozação a grande piada que Pedro Álvares Cabral descobriu e nossos chefes vão aprimorando.

Assim, como plágio, leio a Folha em suas páginas e colunas de seriedade – e corro logo pra ver na Ilustrada a análise do José Simão. Agora e nestes dias, ele ... ... – e deixa algum espaço e liberdade para os nossos -ops- políticos. Material abundante, aliás, desde que o Senado entrou em cena. Piada ali é o que não falta, e de alto calibre, mesmo porque o Lula está pondo o mundo em ordem (!) e deixa na desordem seus filhos naturais e desnaturais.

O que assistimos é a um troca-troca de líderes, afirmações, compromissos, ninguém mais se entendendo nem sabendo aonde chegar, quem é quem e quem será. Olhe, meus amigos, este troca-troca de alto nível me lembra – no estilo Zé Simão – um troca-troca ocorrido na fazenda do Zé Humberto, meu irmão, testemunha da história, embora infelizmente morta. Mas eu conto o caso. Moravam na sua fazenda o Zé Grandão e o Tibó, empregados de tipos e costumes diferentes, porém preciosos e grandes amigos. Aos sábados, após o fecho da semana, iam ali no arraial do Veríssimo encontrar os amigos do jogo de truco e a boa pinga do cabaçal – era sua alegria.

Pois bem, naquele sábado, o Zé recebeu um saldo de grana e o Tibó nada tinha pra receber, ia de companhia zerada. Na estrada e caminho, o Zé Grande viu um bom monte de bosta fresca de vaca, deitou falação: “Tibó, eu aqui vou com meus cinquenta no bolso tomar boa pinga, gozar a vida – e você fica na draga, só olho e inveja. E tem mais, medroso, porque se tiver coragem e comer este monte de bosta, eu lhe dou os cinquenta reais!”. Tibó, humilhado, “p” da vida, tomou fôlego, baixou mão e boca e traçou a bosta da vaca. Zé grande fez “eco” – mas pagou.

A situação se inverteu na caminhada. Agora, o Tibó, ainda cuspindo e limpando a boca, ficou soberano. “Pois é” – dizia –, “seu Zé Besta, agora eu tenho meu cinquenta, vou jogar truco, mexer com as mulheres – e você vai ficar olhando, seu palhaço! E tem mais, se você tiver coragem e comer o resto da bosta, eu te pago os cinquenta!” Danou-se. O Zé, humilhado, baixou a boca na bosta, recebeu de volta os cinquenta, e continuaram a marcha heroica para o Veríssimo.

Daí a cem metros, Tibó parou, o Zé também, e o Tibó concluiu: “Compadre, você reparou que nós comemos merda de graça?”. Pois é, meus amigos, tem gente assim em acertos pra todo lado. Em Brasília, então...

João Gilberto Rodrigues da Cunha (médico e pecuarista)
Publicado no Jornal da Manhã (Uberaba-MG) - em 15.07.2009

Araguarino, teólogo, músico e jornalista, mora nos EUA

Biografia do compositor Atilano Muradas

Atilano Muradas é bacharel em Teologia e Jornalismo. Além de atuar nestas áreas, é compositor, pastor, músico e escritor. Possui sete cds gravados, três livros publicados e artigos em periódicos nacionais e internacionais. É conferencista e escritor nas áreas de louvor, adoração, etnomusicologia, família e comunicação, conhecido por ser um dos incentivadores da música brasileira no culto. Atualmente, reside em Houston, Texas, EUA onde é pastor titular da Igreja Presbiteriana Brasileira de Houston.
Faz parte da equipe de colaboradores da Bíblia Brasileira de Estudos (Editora Hagnos). Seus livros publicados são: “Tocar violão é fácil” (Editora Betânia), “Decolando nas asas do louvor” (Editora Vida), “A Música Dentro e Fora da Igreja” (Editora Vida) – Prêmio Areté, em 2004, e seus cds lançados são Minha Geração, Brasileiros, Carta aos Levitas, Missões, O Brasil precisa de Deus, Canto Brasileiro e Trampolim.

Educado na Igreja Presbiteriana de Araguari, Minas Gerais, desde a tenra idade teve contato com a Bíblia Sagrada e seus ensinos. Antes mesmo de entrar na escola, aos seis anos, inclusive, foi alfabetizado pela mãe nos textos bíblicos e no hinário (livro com as letras dos hinos).

“Nos primeiros anos da escola, quando os professores pediam para escrever algum texto, eu usava as palavras que conhecia. Muitas delas eram usadas apenas nos textos bíblicos. Alguns professores nem sabiam aquelas palavras e diziam que estava errado, então, eu tinha que mostrar que existiam aquelas palavras na Bíblia”, conta Atilano.

Em geral, Atilano Muradas compõe sozinho suas músicas e letras, contudo, durante sua trajetória, ele teve parceiros isolados cujas canções ainda não foram lançadas. “Meu maior e quem considero meu único parceiro é Sebastião Lázaro Henriques. Fizemos 55 músicas juntos, mas nenhuma ainda foi lançada”, conta Atilano.

Parceria - Sebastião Lázaro Henriques que, hoje, é alto funcionário da Caixa Econômica Federal, no Brasil, é também exímio poeta e compositor. Suas letras e poesias são de uma originalidade sem precedentes. É possível ver em suas palavras, sobretudo, o eruditismo do período romântico e simbolista brasileiro, mas, também, um toque contemporâneo e sofisticado. Atilano e Sebastião formaram uma dupla de grande expressão entre os anos 1978 a 1983, na região do Triângulo Mineiro, mais precisamente em Araguari, cidade onde nasceram e deram seus primeiros passos artísticos, se estendendo para Uberlândia até Brasília e Goiânia. Ali participaram de muitos festivais de música, animaram muitas festas, fizeram muitos shows e encantaram muita gente.

A dupla desenvolveu um tipo de composição bem diferente, enfocando temas poéticos subjetivos altamente sofisticados e diferentes. “Não conheço ninguém na MPB que faça o estilo de música que fazemos”, diz Sebastião. Entretanto, quem ouve o repertório da dupla poderá constatar elementos dos compositores mais famosos da época (Vinícius, Chico Buarque, João Bosco, Milton Nascimento, Beto Guedes, Fagner, Francis Hime, etc), mas com a originalidade criada por Atilano e Sebastião.

Quis o destino, no entanto, que Atilano e Sebastião se separassem quando ambos tinham por volta dos 21 anos de idade. Atilano seguiu carreira militar e Sebastião seguiu carreira como bancário – o assunto, inclusive, foi tema de uma das derradeiras músicas que compuseram juntos. Exporadicamente, se encontraram para shows e, agora, em 2010, planejam lançar o primeiro CD da dupla.

Extraído do blog de Atilano Muradas

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Elegia ao cinquentenário de Brasília

(da prece de Guilherme de Almeida)

Brasília,
desejo das alturas,
desejo da altivez,
o orbitar no vazio,
no espaço irrestrito.

Dona de vôo próprio,
caminhos espontâneos,
sem pré-traçados,
mas antes imaginados
nas mãos do arquiteto.

Trajeto que constitui
a própria trilha do vôo,
buscando os ares elevados,
encontraste um não-espaço,
teu próprio espaço, uma utopia.

Espaço do desejo,
do olhar que vem de cima,
qual olho divino,
capaz de planejar suas formas,
dotadas de vida e leveza.

Tua irreverência,
plena inocência,
espaço aberto, infinito,
modernidade, cultura urbana,
louvação ao poder.

Ricardo Wagner Ribeiro, 21 de abril de 2010

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Cidade literária, urbanismo arcaico: Brasília de Guimarães Rosa e João Cabral de Melo Neto

Aí estás, Brasília! E, como estás, pareces
ave de asas abertas sobre a terra:
vôo pousado para alçar-se, altivo!

Não é difícil observar, nesse trecho da “Prece natalícia de Brasília” (1), pronunciada pelo acadêmico Guilherme de Almeida no dia 21 de abril de 1960, a visão triunfalista que esteve na base do processo de planejamento e construção da nova capital. Concebida para ser um marco da modernização no Brasil, Brasília surge como signo de afirmação de uma nova era, como gesto de desafio, que pretende condensar e difundir a imagem de um Brasil-potência. Tratava-se de criar não apenas uma cidade, mas uma nova forma de organização social, nova cultura, nova sensibilidade: um homem novo. A empreitada arquitetônica, em geral restrita à interferência em espaços físicos já constituídos, se vê transformada em algo muito mais ambicioso: em atividade amplamente urbanística, entendida como a tentativa de arregimentação de todos os planos de uma sociedade humana.

Não é por acaso que Brasília é concebida como uma “capital aérea”, expressão utilizada, no Plano-Piloto, pelo próprio Lúcio Costa (2). Não se trata somente de uma referencia a seu formato. Ao se construir uma cidade dotada de asas, conjugando o saber intuitivo do pássaro à mais avançada tecnologia aeronáutica, veicula-se um desejo especifico e um determinado modo de olhar. O desejo das alturas, que é também o desejo da altivez. O desejo de se poder orbitar no vazio, em um espaço desprendido de referencias, espaço irrestrito, propício à total autonomia de vôo. Espaço sem caminhos pré-traçados, no qual é o deslocamento que constitui a trilha. Buscando os elevados ares, encontra-se um não-espaço, a utopia de libertar-se das contingências para habitar o próprio espaço do desejo. E é desse não-espaço que se forja o olhar do urbanista-aeronauta: um olhar que vê sempre de cima, como um olho divino, que é capaz de mapear territórios, de planejar suas formas ideais, de fundá-los como organismo, dotando-o de vida e leveza, içando-o ao alto com o seu sopro.

Irreverentemente, ou melhor, com uma irreverência que se considera plena inocência, o olho projeta-se na amplitude dos espaços abertos, infinitos, sem quaisquer obstáculos a seu movimento. Eis o olho do homem moderno, disposto a olhar como se fosse sempre pela primeira vez. Olho infantil, o mais adequado, segundo Baudelaire, para compreender a modernidade expressa pela cultura urbana: “A criança vê tudo como novidade: ela sempre está inebriada” (3). Brasília foi planejada para inebriar-se com as alturas, para olhar com os olhos virgens de uma criança. Em outro trecho da “Prece” de Guilherme de Almeida, ressoa a louvação ao poder inconteste desse novíssimo olho:

Aí estás, Brasília do olhar de menina! Menina-dos-olhos
olhando sem mágoa o passado e sem medo o Futuro,
sem ver horizontes na terra e no céu porque eles recuam
ao impacto impetuoso das tuas pupilas (4)

A presença intensa da imagem do vôo e a constituição de um olhar infantil também podem ser observadas em dois contos do livro “Primeira estórias”, de Guimarães Rosa, cuja primeira edição foi publicada em 1962. Os contos “As margens da alegria” e “Os cimos” (5), abertura e conclusão do livro, têm como protagonista um menino – significativamente denominado “O Menino” – e narram, ambos, viagens ao “lugar onde se construía a grande cidade” (6). O inicio do primeiro conto, quando o menino embarca no avião “especial”, “da Companhia”, é marcado por uma intensa sensação de plenitude. “Era uma viagem inventada no feliz: para ele, produzia-se em caso de sonho”. O clima de deslumbramento é hiperbólico, contamina todas as pequenas ações:

Respondiam-lhe a todas as perguntas, até o piloto conversou com ele. O vôo ia ser pouco mais de duas horas. O menino fremia no acorção, alegre de se rir para si, confortavelzinho, com um jeito de folha de cair. A vida podia às vezes raiar numa verdade extraordinária. Mesmo o afivelarem-lhe o cinto de segurança virara forte afago, de proteção, e logo novo senso de esperança: ao não-sabido, ao mais. Assim um crescer e desconter-se – certo como o ato de respirar – o de fugir para o espaço em branco. O Menino (7).

Todas as perspectivas se abrem. Todas as promessas estão prontas para serem cumpridas.

Nada se opõe ao desejo. Ou melhor: o desejo nem chega a se manifestar, já que, nesse estado de infância absoluta, paradisíaca, qualquer possível demanda já foi, de antemão, atendida. “E as coisas vinham docemente de repente, seguindo harmonia prévia, benfazeja, em movimentos concordantes: as satisfações antes da consciência das necessidades” (8). O olhar infantil, que absorve a verdade total, que capta a mais esfuziante luminosidade, pode, do alto, compreender o mundo como um mero conjunto de pontos em um mapa. Sua visão é imponentemente cartográfica: reduz, à sua perspectiva, as dimensões dos objetos observados. “Se homens, meninos, cavalos e bois – assim insetos?” (9).

A primeira parte do conto é toda marcada pela euforia da descoberta: “O Menino via, vislumbrava. Respirava muito. Ele queria poder ver ainda mais vívido – as novas tantas coisas – o que para os seus olhos se pronunciava” (10). Este Menino maiúsculo é uma espécie de Adão, fundando um universo à medida que o nomeia. Seu olhar inaugural está sintetizado na figura de um peru, que aparece no quintal da casa de madeira, próximo à mata: um peru “imperial”, “completo”, “para sempre”, símbolo explicito de potência. A grandiloqüência da percepção do Menino condiz com o espírito norteador da construção daquela cidade. Uma grande realização que surge do nada, como num passe de mágica. Como se a mesquinhez das regras da realidade tivesse sido burlada. Por isso o Menino podia sentir-se “nos ares”. Por isso era possível afirmar: “Esta grande cidade ia ser a mais levantada do mundo” (12).

A segunda metade do conto, no entanto, coloca um fim nesse entusiasmo desmedido. O peru fora morto. O Menino agora penetra em um ambiente hostil no qual “tudo perdia a eternidade e a certeza”. A construção da cidade passa a ser percebida sob a ótica do cansaço extremo, como uma tarefa terrível, comandada pela tosca ação das máquinas: construção percebida como destruição. O Menino “descobria o possível de outras adversidades”, e, então, “abaixava a cabecinha” (13).

Entretanto, o final do conto revela uma nova mudança, que transpõe os dois pólos até então apresentados: de um lado a plenitude, do outro o desgosto e o remorso. Surge um outro peru, menor. Mas também surge a cabeça degolada do primeiro. A alegria se reconstitui, mas recortada pela perplexidade. O Menino é introduzido no reino da ambigüidade, dos sentimentos contraditórios: “O Menino se doía e se entusiasmava” (14). Constata-se a impossibilidade de compreender a perversidade do mundo: o novo peru bica, com ódio, a outra cabeça. Não há mais a luminosidade irrestrita do princípio. “Trevava” (15). O vôo, agora, não é grandioso, mas o de um modesto vagalume. O olhar é levado a se contentar com uma luz efêmera e intermitente.

Poética arquitetural

Há muitos pontos comuns entre o pensamento modernizador que fundamentou a concepção e a construção de Brasília e as opções estéticas que alicerçam a obra de João Cabral de Melo Neto. Pode-se citar, como algumas das linhas mestras da poética cabralina, a busca de racionalidade concretista, o planejamento minucioso das formas cuja autonomia é perseguida, em detrimento do subjetivismo e da ornamentação, a recusa da tradição vigente através da adoção de uma postura que considera crítica e criação como operações indissociáveis. Sobretudo, há o fascínio pela possibilidade de transplantar, para a poesia, o caráter construtivista da arquitetura. O próprio João Cabral enfatiza a grande influência exercida por nomes como Lincoln Pizzie, arquiteto, Joaquim Cardozo, calculista de Brasília e de outros projetos de Niemeyer e, fundamentalmente, Le Corbusier: “Para mim, a poesia é uma construção, como uma casa. Isso eu aprendi com Le Corbusier. A poesia é uma composição. Quando digo composição, quero dizer uma coisa construída, planejada – de fora para dentro” (16).

A eleição da concretude do “fora” como vetor determinante do processo poético equivale à recusa do império da subjetividade sustentado pela força da tradição romântica. Trata-se, assim, de esvaziar o “dentro” para que a poesia se construa a partir de um território vazio. De maneira similar ao movimento de quem almeja “edificar do nada” (17) uma cidade, como ocorre com o urbanista moderno, o gesto do poeta é o gesto daqueles que “têm um vazio a preencher” (18).

Através da identificação entre poeta e arquiteto, constata-se, na obra de João Cabral de Melo Neto, o endosso do caráter utópico – tipicamente modernista – que está na base da concepção de Brasília. Tal concepção é marcada pela grandiloqüência das intenções, pelo “caráter monumental” do empreendimento. Nas palavras de Lúcio Costa: “monumental não no sentido de ostentação, mas no sentido da expressão palpável, por assim dizer, consciente, daquilo que vale e significa” (19). Autoconsciência e racionalidade utópicas que ecoam com nitidez em versos como os do poema “Fábula de um arquiteto” (20).

O arquiteto: o que abre para o homem
(tudo se sanearia desde casas abertas)
portas por-onde, jamais portas-contra;
por onde, livres: ar luz razão certa.

Notável em João Cabral é que o fato de endossar o potencial utópico vislumbrado na ação do arquiteto não pressupõe o abandono de uma visão crítica dos riscos dessa ação. No mesmo poema, chama-se atenção para a hipótese de que a arquitetura possa vir a “refechar o homem”:

Onde vãos de abrir, ele foi amurando
opacos de fechar; onde vidro, concreto;
até refechar o homem: na capela útero,
com confortos de matriz, outra vez feto.

O ímpeto civilizador não abole a ameaça de retorno a um estágio primitivo. A lucidez obstinada pode se contaminar pela indolência sombria. A racionalidade não é necessariamente antídoto para o misticismo. A virilidade que abre pode se converter no introjetar feminino. O progresso descobre seu caráter regressivo.

Vôo parado
Retomando a obra de Rosa, pode-se dizer que o conto “Os cimos” é, de certa forma, uma imagem invertida de “As margens da alegria”. A situação inicial é a mesma: o vôo do Menino para Brasília em construção. Entretanto, ao contrário da efusividade inicial do primeiro conto, a sensação é a de um indisfarçável mal-estar, associado ao sofrimento: “Entrara aturdido no avião, a esmo tropeçante, enrolava-o por dentro um estufo como cansaço; fingia apenas que sorria, quando lhe falavam. Sabia que a Mãe estava doente” (21). O olho não se deslumbra mais com a possibilidade de ver tudo, de absorver a luminosidade plena: “A gente devia poder parar de estar tão acordado, quando precisasse, e adormecer seguro, salvo. Mas não dava conta. Tinha de tornar a abrir demais os olhos, às nuvens que ensaiavam esculturas efêmeras”. A imagem do vôo deixou de ser gloriosa e radiante, de indicar um movimento orgulhosamente progressivo. O vôo, agora, é estático, ou mesmo regressivo: “O avião não cessava de atravessar a claridade enorme, ele voava o vôo – que parecia estar parado. Mas no ar passavam peixes negros, decerto para lá daquelas nuvens: lombos e garras. O menino sofria sofreado. O avião então estivesse parado voando – e voltando para trás, mais, e ele junto com a Mãe” (22).

O frescor do olho infantil já está comprometido pela adversidade e pela nostalgia de algo que se perdeu. O Menino não é mais tão substantivo, concentrado apenas em sua própria mirada. Ele se descentra, percebe-se no ato de incorporar olhares alheios, “como assistir às certezas lembradas por um outro; era que nem uma espécie de cinema de desconhecidos pensamentos; feito ele estivesse podendo copiar no espírito idéias de gente muito grande” (23). O Menino envelhece.

No decorrer do conto, redescobre-se o encanto, reconquistado através do vôo de um tucano, “suspenso esplendentemente”. A imagem do vôo recupera um sentido de plenitude de luz e de certeza: “Toda a luz era dele, que borrifava-a de seus coloridos” (24). No entanto, constata-se em seguida que o vôo do tucano é, na verdade, descontínuo; não é movimento puro, mas também estaticidade, não-vôo, “feito se, a cada parte e pedacinho de seu vôo, ele ficasse parado, no trecho e impossivelzinho do ponto, nem no ar – por agora, sem fim e sempre” (25). O conto transforma-se em um jogo de ganhos e perdas. Perde-se o boneco, acha-se o seu chapéu anteriormente perdido. Ganha-se a desejada recuperação da saúde da mãe, arca-se com a consciência de que aqueles são “dias quadriculados” (26). Ganha-se o encanto, mas “depois do encanto, a gente entrava no vulgar inteiro do dia” (27). No final, afastando-se de Brasília, o olhar do Menino não vê mais a totalidade da paisagem a seus pés, subordinada aos mapas. A paisagem, agora, está “fora das molduras” (28). O vôo, cercado de enigmas, e não mais de verdades, não se conclui, é um vôo que ainda não chegou.

Superpondo, à imagem de Brasília como “cidade a mais levantada” e cidade aérea, uma gama de imagens de vôo que vão da modalidade ao estático, da luz total às trevas, do pensamento infantil ao envelhecido, da perspectiva de visão superior ao olho que não vê, Guimarães Rosa explora as ambigüidades que estão no cerne do imaginário brasileiro relativo à modernização urbana. Coloca-se em discussão a crença na viabilidade de um projeto civilizatório baseado na grandiloqüência de intervenções estatais. A Brasília literária surge como orgulho mas também como vítima de uma suposta racionalidade urbanizadora. Edificar, colocar em prática um projeto utópico envolve, inexoravelmente, a perda da inocência, o confronto com fatores que corroem os ideais, ou, ainda, que revelam a face autoritária escondida sob a máscara das boas intenções. Nesse sentido, Rosa se inscreve na mesma perspectiva de outros escritores brasileiros, como o próprio João Cabral de Melo Neto, que enxerga, nos palácios de Brasília, casas-grandes de engenho, (29) ou Clarice Lispector, quando observa que, apesar de ter sido construída sem um lugar para os ratos, Brasília acaba sendo por eles invadida (30).

Na direção contrária aos discursos triunfalistas – como o de André Malraux, que detecta, em Brasília, a possibilidade de “pôr a arquitetura ao serviço da Nação, de restituir-lhe parte da alma, que perdera” (31) -, as imagens literárias esboçam o vôo extremo da modernidade não apenas segundo seu poder de propulsão, sua velocidade, mas também segundo seus vetores de paralisia ou retenção, seus inevitáveis atrasos. Apontam para o fato de que reconstituir a alma ideal da nação é impossível, e que essa alma só pode mesmo reconhecer-se como perda.

Porosidade do concreto
Se compreendemos Brasília como uma espécie de absolutização do gesto modernista – o moderno levado a seu limiar -, encontramos nela um campo privilegiado para o reconhecimento das contradições de tal gesto. É na cidade mais tipicamente moderna que as dissonâncias do moderno se expõem na sua máxima intensidade. E a obra de João Cabral se alimenta dessas dissonâncias para propor uma reflexão a respeito do modo como se constitui a cultura brasileira. É possível detectar, acompanhando a perspectiva poética sugerida por suas imagens de Brasília, a principal linha que compõe um retrato crítico do Brasil:

No cimento duro, de aço e de cimento,
Brasília enxertou-se, e guarda vivo,
esse poroso quase carnal da alvenaria
da casa de fazenda do Brasil antigo (32).

O que se realça é que nas pretensas concretude e coesão do projeto modernizador está infiltrada a porosidade resistente da tradição colonial como traço básico da cultura brasileira. Nos interstícios da sofisticação industrial urbana, os resíduos irremovíveis do primitivismo agrário e escravocrata. É verdade que, no Plano-Piloto, o próprio Lúcio Costa já se referira à construção de Brasília como um “ato desbravador, nos moldes da tradição colonial” (33). Tal afirmativa deveria, a princípio, soar estranha ao ímpeto de modernização – que se sustenta, obviamente, pela negação do passado. No entanto, quando se associa a ação de colonizar à de desbravar, cultiva-se uma visão heróica da colonização, o que corresponde a dizer que a colonização é pensada da perspectiva do colonizador. O desenho da aeronave – traçado básico de Brasília e reconstituição moderna da Cruz de Malta içada nas caravelas portuguesas – atualiza o ímpeto de expansão do mundo, de domínio de novos territórios. Gloriosa, a expansão acredita justificar-se por si mesma, por sua própria inexorabilidade.

O que se encontra na poesia de João Cabral de Melo Neto não é o apagamento da interface conflituosa colonizador-colonizado, mas, exatamente, a exploração de tal interface. Dessa maneira, é possível fazer vir à tona o caráter profundamente arcaizante do intuito modernizador. É possível enxergar Brasília como uma cidade arcaica, como a mais arcaica das cidades. Cidade onde os palácios são “casas-grandes” (34), sintetizando a repetição das estratégias de dominação do passado colonial.

No poema “À Brasília de Oscar Niemeyer” (35), o “espraiamento da alma” visado pelo olho modernizador é viabilizado pela horizontalidade dos espaços. Contudo, se o olho se lança a partir das novas edificações – que são “horizontais, escancaradas”, mas não deixam de ser “casas-grandes de engenho” – , as imagens por ele produzidas são marcadas por uma ambigüidade perversa, seja na indisfarçável retórica de seu tom nacionalista, seja no caráter impositivo de sua pretensão pedagógica:

Eis casas-grandes de engenho,
horizontais, escancaradas,
onde se existe em extensão
e a alma todoaberta se espraia.

Não se sabe é se o arquiteto
as quis símbolos ou ginástica:
símbolos do que chamou Vinícius
“imensos limites da pátria”

ou ginástica, para ensinar
quem for viver naquelas salas
um deixar-se, um deixar viver
de alma arejada, não fanática.

Por Luis Alberto Brandão Santos

Universidade Federal de Minas Gerais
27 de Agosto de 2009

Revolução do Tempo

O relógio marca as horas
como o tempo marca meu rosto
as pedras do caminho
marcam muitos desatinos

Aianda - ouço seu canto de manhã
se espalhando nos quintais de Brasília
a pressa do vento
varreu pra longe
meu sossego de mineiro

Nas águas tranqüilas do Lago Norte
te vi tomar banho de sol
um vento ainda mais forte
chegou em cavalo branco
e trouxe um espelho mágico
onde a gente se olhava sem se ver

Lá se foram meus 30 anos
seus 20 acabavam de chegar
tempo sábio, menino-homem
minha calma de homem-peixe
asas livres de ruborboleta
voando, voando, entre flores de abril

Agora resta um rosto marcado
e as batidas do relógio balançando na parede
pés marcados pelo pó da estrada
vão dar no fim dessa canção do tempo.

Ricardo Wagner Ribeiro

A metamorfose

Na véspera
eu já havia me transformado
Aliás, na antevéspera
eu já não era o mesmo

Palpitações estranhas
no fundo do ser
Respiração ofegante
o rosto pálido

Olhos em brasa
boca ardente, peito em chamas
As mãos, antes espalmadas
agora distantes

Enfim, um animal
perdido no mundo sem paz
Hibernando no platonismo e na dor
da natureza morta.

Ricardo Wagner Ribeiro

Portas de Brasília

Brasília, cidade em chamas
brisa queimando o coração do Brasil

índio indo
de pasta gravata e colarinho branco

tem favela na superquadra
camelô vendendo muamba

pé rapado de carrão
sapato brilhante
terno de linho branco

Em Brasília a grana rola
a grama nasce e cresce
no mar de asfalto e concreto

Brasília, avião
voando vôo alto, razante
traça planos sem piloto
olhos no horizonte
pé no chão, cabeça não

Brasília, brasa ardente
brisa leve, vida breve

céu claro, lago azul
asa norte, asa sul

desce gente de outros planetas
para observar
sobe disco voador
cai a lona do gran Circo lar.

Ricardo Wagner Ribeiro

Brasilha vazia

Cidade calada, com medo do nada
barulho zumbindo, engolindo a cidade
pessoas nas entrequadras
cigarras, sirenes, automóveis voando

Brasília presente
cidade que brilha na solidão dos astros
ainda distante, suas asas me afagam
arranham meu coração

A noite desce serena
calma no seu colo
cansaço encoberto, cidade parada
silêncio no meio do nada

Sorrisos iluminados
medo do nada, distância...
a gente acordando do sonho
Brasília amanhece fria, calada, vazia.
 
Ricardo Wagner Ribeiro

sábado, 17 de abril de 2010

Um escritor nasce e morre

por Carlos Drummond de Andrade

I
Nasci numa tarde de julho, na pequena cidade onde havia uma cadeia, uma igreja e uma escola bem próximas, umas das outras, e que se chamava Turmalinas. A cadeia era velha, descascada na parede dos fundos, Deus sabe como os presos lá dentro viviam e comiam, mas exercia sobre nós uma fascinação inelutável (era o lugar onde se fabricavam gaiolas, vassouras, flores de papel, bonecos de pau). A igreja também era velha, porém não tinha o mesmo prestígio. E a escola, nova de quatro ou cinco anos, era o lugar menos estimado de todos. Foi aí que nasci: Nasci na sala do 3° ano, sendo professora D. Emerenciana Barbosa, que Deus tenha. Até então, era analfabeto e despretensioso. Lembro-me: nesse dia de julho, o sol que descia da serra era bravo e parado. A aula era de geografia, e a professora traçava no quadro-negro nomes de países distantes. As cidades vinham surgindo na ponte dos nomes, e Paris era uma torre ao lado de uma ponte e de um rio, a Inglaterra não se enxergava bem no nevoeiro, um esquimó, um condor surgiam misteriosamente, trazendo países inteiros. Então, nasci. De repente nasci, isto é, senti necessidade de escrever. Nunca pensara no que podia sair do papel e do lápis, a não ser bonecos sem pescoço, com cinco riscos representando as mãos. Nesse momento, porém, minha mão avançou para a carteira à procura de um objeto, achou-o, apertou-o irresistivelmente, escreveu alguma coisa parecida com a narração de uma viagem de Turmalinas ao Pólo Norte.

É talvez a mais curta narração no gênero. Dez linhas, inclusive o naufrágio e a visita ao vulcão. Eu escrevia com o rosto ardendo, e a mão veloz tropeçando sobre complicações ortográficas, mas passava adiante. Isso durou talvez um quarto de hora, e valeu-me a interpelação de D. Emerenciana :
- Juquita, que que você está fazendo?

0 rosto ficou mais quente, não respondi. Ela insistiu :
- Me dá esse papel aí. . . Me dá aqui.

Eu relutava, mas seus óculos eram imperiosos. Sucumbido, levantei-me, o braço duro segurando a ponta do papel, a classe toda olhando para mim, gozando já o espetáculo da humilhação. D. Emerenciana passou os óculos pelo papel e, com assombro para mim, declarou à classe:
- Vocês estão rindo do Juquita. Não façam isso. Ele fez uma descrição muito chique, mostrou que está aproveitando bem as aulas.

Uma pausa, e rematou:
- Continue, Juquita. Você ainda será um grande escritor.

A maioria, na sala, não avaliava o que fosse um grande escritor. eu próprio não avaliava. Mas sabia que no Rio de Janeiro havia um homem pequenininho, de cabeça enorme, que fazia discursos muito compridos e era inteligentíssimo. Devia ser, com certeza, um grande escritor, e em meus nove anos achei que a professora me comparava a Rui Barbosa.

A viagem ao Pólo foi cuidadosamente destacada do caderno onde se esboçara, e conduzida em triunfo para casa. Minha mãe, naturalmente inclinada à sobrestimação de meus talentos, julgou-me predestinado. Meu pai, homem simples, de bom-senso integral, abriu uma exceção para escutar os vagidos do escritorzinho. Ganhei uma assinatura do Tico-Tico, presente régio naqueles tempos e naquelas brenhas, e passei a escrever contos, dramas, romances, poesias e uma história da guerra do Paraguai, abandonada no primeiro capitulo para alívio do Marechal Lopez.

II
Escrevi. Escrevi. Deixei Turmalinas. No internato, fui redator da Aurora Ginasial, onde um padre introduziu criminosamente, em minha descrição da primavera, a expressão "tímidas cecéns", que me indignou. Cá fora, revistas literárias passaram a abrigar-me com assiduidade. Em uma delas meu retrato apareceu, com adjetivos. Não me pagavam nada, nem eu podia admitir que literatura se vendesse ou se comprasse. Quantas vezes meu coração bateu quando os dedos folheavam, trêmulos, o número de sábado, ainda cheirando a tinta de impressão ! Publicou... Não publicou... E sempre a descoberta do meu trabalho, ainda em plena rua, despertava a sensação incômoda do homem que foi encontrado nu e não teve tempo de cobrir as partes pudendas. Eu escondia meu crime, orgulhoso de tê-lo cometido, fazendo da literatura um segredo de masturbação. Havia semanas em que o Fon-Fon!, o Para Todos, a Careta e a Revista da Semana publicavam simultaneamente trabalhos de minha humilde lavra, todos ou quase todos poemas em prosa, em que me especializara. Nem sempre havia numerário suficiente para adquirir todas as revistas, e então o copo de leite quente, com pão e manteiga, à noite, antes de ir para a pensão, sacrificava-se com galanteria às belas-letras.

Escrevi muito, não me pejo de confessá-lo. Em Turmalinas, gozei de evidente notoriedade, a que faltou, entretanto, para duração, certo trabalho de jardinagem. É verdade que Turmalinas me compreendia pouco, e eu a compreendia menos. Meus requintes espasmódicos eram um pouco estranhos a uma terra em que a hematita calçava as ruas, dando às almas uma rigidez triste. Entretanto, meu nome em letra de fôrma comovia a pequena cidade, e dava-lhe esperança de que o meu talento viesse a resgatar o melancólico abandono em que, anos a fio, ela se arrastava, com o progresso a 50 quilômetros de distância e cabritos pastando na rua.

Não houve resgate, e a cidade esqueceu-me. Nunca mais voltei lá. De lá ninguém me escreveu, pedindo para fazer uma página sobre o Pico do Amor ou a Fonte das Sempre-Vivas. Meus parentes espalharam-se ou morreram. 0 escritor tornou-se urbano.

III
Publiquei três livros, que foram extremamente louvados por meus companheiros de geração e de pensão, e que os críticos acadêmicos olharam com desprezo. Dois volumes de contos e um de poemas. Distribuí as edições entre jornais, amigos, pessoas que me pediram, e mulheres a quem eu desejava impressionar.

Sobretudo entre as últimas. Minha tática, de resto bem simples, consistia em jamais pronunciar ou sugerir a palavra literatura. Eu não era um literato que se anunciava, mas um homem que, no fundo, sofria por saber-se literato. Minha literatura assumia feição estranha, com alguma coisa de nativo e contrariado na origem, mas vegetando não obstante.

- O senhor escreve coisas lindíssimas, eu sei...

- Calúnia de meus inimigos. Infelizmente, é impossível viver sem fazer inimigos. Eles é que espalham isso, não acredite...

Meu sorriso ambíguo, de dentes não suficientemente íntegros (ganhei fama de irônico por causa do sorriso envergonhado) sublinhava a intenção discreta da negativa.

O sujeito afastava-se, impressionado. Muitas reputações nacionais não se estabelecem de outro modo. Eu escrevia.

IV
Escrevia realmente para que, escrevia por quê? Autor, tipógrafo e público não saberiam responder. Eu não tinha projetos. Não tinha esperanças. A forma redonda ou quadrada do mundo me era indiferente. A maior ou menor gordura dos homens, sua maior ou menor fome não me preocupavam. Sabia que os homens existem, que viver não é fácil, que para mim próprio viver não era fácil, e nada disso contaminava meus escritos. Dessa incontaminação brotara, mesmo, certa vaidade. "Artista puro", murmurava dentro de mim a vozinha orgulhosa. "Não traia o espírito", acrescentava outra voz interior (borborigmo, talvez). Como o espírito não protestasse, eu me atribuía essa dignidade exemplar, feita de gratuidade absoluta. E escrevia. Rente a meu ombro, outros rapazes faziam o mesmo. E não queríamos nada, não esperávamos nada. Éramos muito felizes, embora não soubéssemos, como acontece geralmente.

O meu, o nosso individualismo fundamental proibia-nos o aconchego das igrejinhas. Éramos ferozmente solitários. Em cada Estado do Brasil, uma academia de letras reunia os gregários, distribuía louros inofensivos. Esses louros repugnavam-me, e os acadêmicos, geralmente pessoas sem complexidade, eram a meus olhos monstros de intolerância, inveja, malícia e incompreensão, intensamente misturadas. O fato de terem quase todos mais de 45 anos apenas adoçava esse sentimento de repulsa, para introduzir nele um grão de piedade triste. Em verdade, ter mais de 45 anos era não somente absurdo como prova de extrema infelicidade. Até certo ponto, os acadêmicos mereciam simpatia. Como os dromedários, animais estranhos que não podem ser responsabilizados pelo gênero de vida que lhes impõe o vício de nascença.

Fugindo aos mais velhos, seria natural que nos ligássemos uns aos outros, os de 20 a 25 anos. Cultivávamos mais ou menos os mesmos preconceitos. As mesmas fobias em cada um de nós. Desgraçadamente, elas nos impunham o cauteloso afastamento recíproco, e nossas conversas de bar, noite afora, tinham traços de ferocidade e autoflagelação. Entretanto...

Licurgo, que compusera comigo o "Poema do Cubo de Éter", descobriu certa noite o tomismo, e eu o expulsei de minha convivência. Mas, sua voz, continuou pregando os novos tempos, perturbando almas sedentas de verdade e metafísica.

Aleixanor, tendo comprado num sebo as Cartas aos Operários Americanos, de Lenine, e começando a colaborar no Grito Proletário, sofreu de minha parte uma campanha de descrédito intelectual. Voltou-se para a ação política, fundou sindicatos, escreveu e distribuiu manifestos, e desfrutou de certa notoriedade até o golpe de 35, quando emudeceu.

A poetisa Laura Brioche fundou um Clube de Psicanálise, que procurei desmoralizar na primeira reunião, introduzindo sub-repticiamente entre os sócios, antes da votação dos estatutos, volumosa quantidade de uísque, genebra e gim. A sessão dissolveu-se em álcool, mas restaram aqui e ali grupos de bem-aventurados que se entretinham na interpretação onírica e confrontavam gravemente seus respectivos complexos, recalques e ambivalências.

Fundaram-se sucessivamente, a Associação dos Amigos dos Livros de História, a Academia dos Gramáticos de Ouro Preto, um Curso de Alimentação Racional, a Sociedade de Aculturação Ário-Africana, o Grupo Deus-Pátria-Justiça-Ensino Profissional, o Clube Esperantista Limitado, o Instituto de Genética.

Todos, em redor de mim, se iam afirmando, fixando.

Todos optavam. Nos jornais, passavam do suplemento de domingo à página editorial. Alguns recebiam manifestações de apreço, outros eram chamados a trabalhar em gabinetes de secretários de Estado. Vários compraram lotes, começaram a edificar. Um deles, extraordinário, conquistou um cartório. A floração de filhos, vitoriosos em concursos de puericultura, afirmava o rumo seguro de minha geração.

Eu perseguia o mito literário, implacavelmente, mas, sem fé. Nunca meus poemas foram mais belos, meus contos e crônicas mais fascinantes do que nesse tempo de crescente solidão. Solidão, solidão... Era só o que havia em torno a mim, dentro em mim. Era como se eu morasse numa cidade que, pouco a pouco, fosse ficando deserta. Algum tempo mais, não haveria ninguém para dirigir os sinais luminosos nas esquinas, dar corda aos relógios, velocidade aos bondes, carne, pão e fruta às casas. De resto, para que bondes, relógios?... Já não havia ninguém, todos se haviam mudado para as cidades em frente, ao norte, ao sul, e eu passeava lugubremente minha solidão nas ruas que ressoavam a meu passo, ruas que outrora me eram familiares, e agora pareciam escurecer, mudar de forma, de cheiro: de tal modo estavam ligadas a uma época, uma geração, um estado de espírito que se decompunham... Tudo ia escurecendo... escurecendo... Mas eu andava, eu continuava, eu não queria acreditar...

Risquei um fósforo, já sob a escuridão absoluta, e na lâmpada que minhas mãos em concha formavam, percebi que tinha feito 30 anos. Então morri. Dou minha palavra de honra que morri, estou morto, bem morto.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Um pouco de Monte Carmelo, cidade onde nasceu minha mãe

   Região antigamente habitada por indígenas, provavelmente da tribo dos Araxás, Monte Carmelo tem a sua origem ligada à chegada dos garimpeiros vindos de São João Del Rei e Tamanduá (hoje Itapecerica), por volta de 1840, atraídos pelos diamantes da Bagagem (atual Estrela do Sul) e de Nossa Senhora da Abadia de Água Suja (Romaria).
   Na época uma grande fazendeira, Clara Chaves, doou uma área de uma légua quadrada para que fosse construída uma capela à Santa de sua devoção, Nossa Senhora do Carmo, em torno da qual foi se formando o povoado, que recebeu o nome de Carmo da Bagagem, elevado à categoria de Vila no dia 06 de outubro de 1882.
   Como Carmo da Bagagem situava-se próximo a um pico, semelhante ao Monte Carmelo, montanha situada no litoral de Israel, onde também se localiza a sede da Congregação das Carmelitas, no dia 25 de junho de 1900, a cidade passa a chamar-se Monte Carmelo, que um hebraico – Karem El – significa "vinhedos de Deus".
   Conhecida como a "Capital da Telha" e "Cidade das Chaminés", Monte Carmelo vem se destacando no cenário nacional pelo seu enorme e importante parque cerâmico, que ao lado da cafeicultura do cerrado, também premiada a nível nacional, na classificação de qualidade, formam a base econômica do município. O clima ameno e agradável e a água saudável, são os grandes atrativos naturais de Monte Carmelo.
   Dona Ruth Garcia, minha mãe, filha do Sr Alberto Garcia (de fazendeiro a carpinteiro) e de Dona Enedina Gonçalves de Oliveira, nasceu em Monte Carmelo em 1° de março de 1932 e casou-se em 1953 com o araguarino Eli Ribeiro, meu pai, com quem teve oito filhos: José Alberto (56), Régia (54), Eli Júnior (53), Marcus Vinícius (52), eu (Ricardo Wagner, 50), Leonardo Alexandre (49), Dalton Mendhelson (47) e Rejane Ribeiro (46), todos nascidos no Hospital Ferroviário de Araguari, com excessão da última, Rejane, que nasceu em casa, ajudada por uma parteira. Treze netos e três bisnetos.

Monte Carmelo pertenceu a Estrela do Sul

Monte Carmelo, município de Minas Gerais com cerca de 51 mil habitantes. Produz telhas, tijolos, artefatos cerâmicos e se destaca na produção de curtume e de embalagens. Grande produtora de café com grãos de altíssima qualidade, serve o Brasil com café do cerrado carmelitano. Junto com Araguari, Uberaba e Patrocínio, está no eixo de destaque da produção do melhor café do cerrado para exportação.

Sua povoação inciiou-se em 1840 por garimpeiros e tem por fundadora Clara Chaves, grande fazendeira que doou uma área (uma légua quadrada) para a construção de uma capela à Santa de sua devoção (em 1870), Nossa Senhora do Carmo, em torno da qual foi se formando o povoado, que recebeu o nome de Carmo da Bagagem. Elevada à categoria de vila no dia 6 de outubro de 1882, a futura Monte Carmelo foi transformada em cidade em 1892, fazendo fronteira com Patrocínio e Douradoquara (que já foi distrito de monte Carmelo).

A escolha da localidade se deu quando os bandeirantes estavam desbravando a região e como aqui é longe da costa onde havia gente, ou seja, mercado consumidor e fácil exportação, eles então estavam procurando alguma mercadoria que poderiam explorar e carregar facilmente para vender ou trocar.

Na época a região de Estrela do Sul, era conhecida pelo Rio Bagagem, onde as lavadeiras da região achavam diamantes na "flor d'água" e os bandeirantes como bons exploradores que eram, chegavam na região e conversavam com os moradores e esta história foi contada a eles. Então começaram a exploração onde já era o município de Bagagem (hoje Estrela do Sul). Após o começo da exploração de diamantes o povoado cresceu rapidamente e conseqüentemente desorganizado e cheio de aventureiros e pessoas sem boa indole.

Os bandeirantes queriam encontrar um lugar um pouco afastado de Bagagem onde eles poderiam trazer suas famílias e então chegando na região onde hoje é Monte Carmelo, viram dois córregos (Mumbuca e Olaria) que possuíam boa quantidade e qualidade de água. Então as famílias foram povoando a região e passou a se chamar Carmo do Bagagem, um distrito ligado a Bagagem, todas as decisões e a administração do povoado estava subordinado a Bagagem.

O nome veio quando uma comitiva de carmelitas chegou na região e o povo queria mudar o nome da cidade que já não mais pertencia a Bagagem, mas por outro lado, não queriam que mudasse muito e estas carmelitas identificaram um morro (hoje conhecido como Igrejinha) que parecia com um morro de Israel chamado de Monte Carmel (carmel em árabe significa uvas de Deus).