terça-feira, 9 de novembro de 2010

On the Road invade o paraíso perdido

12 h de viagem, uma balsa e uma estrada com risco de morte para chegar na terra prometida
Trilha e estradas perigosas, mensagens em placas e postes
Nas palavras do rei, a Babilônia está queimando



Não dava mais para voltar. E, ainda que fizesse algum sentido dar meia volta na estrada, nenhum de nós seríamos suficientemente loucos para desistir e não ir atrás de tudo o que estava nos esperando nas próximas cinco horas. Ali estávamos todos, de pé, em frente ao único supermercado de Delfinópolis. Eu, dois fotógrafos e um advogado conversando com José, um senhor de setenta e poucos anos completamente assustado com a nossa abordagem sem formalismos, sem mentira, começando assim: “Como é que pegamos a estrada para a Babilônia”?
O sujeito ficou espantado no ato e tratou de ficar correndo os dedos pelos cabelos envelhecidos para tentar achar, num canto da cabeça, uma resposta, uma sentença, uma maneira de nos dissuadir de seguir em frente para os “caminhos tortuosos da noite”. “Vai que Deus não quer que vocês cheguem lá hoje?”, tratou de emendar, olhando no fundo dos nossos olhos joviais, cheios de culpa, de medo, de dúvidas sobre os mistérios do planeta. Parecia até um anjo negro batendo as asas no meio do vento.
Garota, eu vou para a Babilônia
Finalmente, isso estava acontecendo. De um ano para o outro, comecei a perceber que talvez o Sistema esteja ruindo, cedendo, se desconcertando nas peças centrais escondidas no meio de tudo. Nas palavras do rei, a Babilônia está queimando. Têm aparecido algumas pessoas com vontade de ver as coisas acontecendo, com curiosidade, com fome de experimentar uma nova percepção sobre as múltiplas possibilidades da vida. E, por coincidência, há alguns meses, fiquei sabendo que existia um distrito chamado Babilônia no interior de Minas Gerais, próximo de Delfinópolis, uma vila perdida no meio da natureza selvagem, com cachoeiras, matas virgens e grandes descobertas interiores. Quase um convite para o paraíso.
Partimos no primeiro dia desta primavera, com o último sol do inverno como testemunha das nossas loucuras particulares que nos colocaram nessa estrada. Partimos sem mapas, sem saber muito do caminho, sem saber se chegaríamos e sem muito dinheiro, contando que encontraríamos uma montanha confortavelmente segura para montar nossas barracas debaixo do céu estrelado, imenso, característico do Sul do estado.
José foi a primeira pessoa que arriscamos pedir alguma informação. Toda vez que mencionávamos o nosso destino, dava para ver as rugas de seu rosto brotando pulsantes por todos os cantos. “Está escuro e os campos da Babilônia não são fáceis. Deus pode não querer que vocês vão para lá hoje. Fiquem, durmam aqui na cidade e amanhã vocês continuam com segurança”, indicou, pela terceira vez em uma mesma frase. Concordamos com a cabeça e saímos andando em direção ao carro. É claro que íamos seguir em frente.
A gente devia ter ouvido o José
Vinte e dois quilômetros de estrada de terra depois, na escuridão profunda de milharais abandonados, sem nenhuma indicação, sem nenhuma alma humana por perto, o acelerador do carro começou a falhar. Paranoia absoluta.
Comecei a pensar nas placas que vi na entrada de Delfinópolis, todas referentes a passagens bíblicas, e senti minha respiração falhando. “Vai que Deus não quer que vocês cheguem lá hoje”. Por que será que Deus estava fazendo isso com a gente? Será que Ele queria esconder alguma coisa de nós, humanos, com pecados pendentes na conta do Céu?
Toda nossa esperança em Tião Pinguinha
Milagrosamente, conseguimos seguir dirigindo até um vilarejo chamado Olhos d’Água, com pouco mais de 800 habitantes. O único mecânico da cidade, porém, estava em um casamento e atendia pelo nome de Tião Pinguinha. “É difícil achar ele à noite”, disse a garota da farmácia, que mal conseguia se aguentar na cadeira de tanta curiosidade. “O que vocês estão fazendo aqui?”, perguntou, enfim, quando eu já estava entrando no carro de volta. “Estamos indo para a Babilônia”, respondi. Ela sorriu com o canto da boca.
Tião não estava no casamento. E em nenhum bar da vila. Nossa saída era um senhor chamado João, que também entendia um bocado de carros. Mas João estava na igreja evangélica. E, como se não bastasse, ele não poderia deixar a capela até o momento em que pincelasse um último acorde no órgão encostado no altar. Sim, João, o mecânico reserva, também usa suas ferramentas para servir ao Senhor.
Tudo indicava que era hora de voltar, mas dali, de Olhos d’Água, já conseguíamos ver a fumaça da Babilônia subindo pela noite, mergulhada no barulho dos galhos que crepitavam no estalar do fogo. Faltava pouco. Muito pouco.
Queima, Babilônia
Entramos pela rua calçada em silêncio, olhando as primeiras casas de madeira enfileiradas pela direita da janela do carro. Estávamos completando 10 horas de viagem nesse exato momento e não dava para saber se tínhamos chegado. “Ei, queremos ir para a Babilônia”, falamos com o molequinho que jogava futebol na garagem de casa. Ele pediu para esperar, entrou por uma porta larga e voltou logo em seguida, ofegante, com uma informação um tanto estranha até para si mesmo: “Minha mãe disse que... aqui é a Babilônia”!
Não parecia o que eu esperava de uma vila chamada Babilônia. Quer dizer, tirando a casa do moleque e outras poucas 15 construções vizinhas, a única coisa que preenchia aquele espaço de terra era uma igreja e uma praça. E tocava música eletrônica em um carro de som estacionado de frente para o único boteco. Não tinha nenhum hippie, nem as cores do reggae em algum muro e nem uma estátua de Jesus no meio da rua. Porém, o cheiro de planta queimando no ar era inconfundível.
“Ninguém mais conhece essa vila por esse nome”, tentou explicar o dono de uma lanchonete. “Já faz alguns anos que somos apenas Ponte Alta. Para os homens de coragem, restaram apenas os ‘Vãos da Babilônia’, para lá da Serra da Canastra”, continuou, agora abaixando repentinamente a voz. “Lá sim ainda existe esse nome. Mas para chegar lá não é fácil. Muitos nunca voltaram”.
Paraíso perdido
Tentando esquecer que, em algum momento da noite anterior, a gente estava dançando com os nativos de Ponte Alta no meio da praça, amanhecemos acampados em outro vilarejo, chamado Glória, conversando com um caubói que prometeu que arrumaria o problema do acelerador. E, por mais estranho que possa parecer, ele arrumou mesmo o problema do acelerador.
Pronto. Segundo os astros, menos de 20 quilômetros nos separavam dos vãos da Babilônia, “uma planície larga cercada nas extremidades por duas serras enormes, que seguem reto pela linha do horizonte”. Era lá que encontraríamos as cachoeiras mais longas, belas e inexploradas de nossas vidas, como se fossem pequenos suspiros de Deus perdidos entre a criação de um Universo de belezas simples, puras, que desafiam a ordem defendida pelos Homens. Um canto de Minas - e do mundo - onde não existem Leis. Uma negação da Babilônia que se lê na Bíblia.
Dirigimos por mais duas horas até começarmos a ver as serras se ajeitando lado a lado, bem no fundo da estrada sinuosa que cortava as montanhas da Canastra. Era estranho estar chegando em algum lugar. “Não esperem encontrar malucos por lá. Eles não aparecem mais por aqui”. Esse aviso do senhor da lanchonete me veio à cabeça. Já faz alguns anos que o turismo da região só contempla jipeiros cachaceiros e cavalgadas previamente planejadas para as noites de lua cheia. Isso porque, misteriosamente, as pousadas da região ficaram caras, de uma noite para a outra.
Nós não esperávamos encontrar ninguém, em todo caso. Muito menos uma cidade, um bar, uma montanha com um mirante famoso, visitado por todos os viajantes que se arriscam por aquelas estradas. Em silêncio, ouvindo só o barulho dos pássaros e da terceira música do Slightly Stoopid, nosso único desejo era encontrar com nós mesmos, com os nossos deuses e anseios, com o nosso Sistema condenado pela emoção de sair por aí apenas para ir, simplesmente Ir. Saímos de casa para encontrar a Babilônia, o caos. E descobrimos o nosso paraíso perdido entre as montanhas da natureza divina.

(Da revista Ragga http://www.divirta-se.uai.com.br/, por Bernardo Biagioni, em 02/11/2010)

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